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Coluna do Biáfora

Duas Estranhas Mulheres

Por Rubem Biáfora, artigo selecionado por Sergio Andrade

“O Olho Mágico do Amor” parecia exceção: embora antes já tivesse havido os precedentes de “Mar de Rosas”, de Ana Carolina, e “A Volta do Filho Pródigo”, de Ipojuca Pontes. Isto é, filmes de um valor cinemático próprio e desligados de greis e contextos, elogios ou promoções e interesses prévios e excusos ou viciados. Mas, num fato auspiciosíssimo, ao ver há dias, por acaso, uma fita paulista de cuja existência mal sabíamos, “Retrato Falado de uma Mulher sem Pudor”, devida a uma desconhecida dupla de estreantes (Hélio Porto, Jair Correia) e que foi uma surpresa total, solicitamos à distribuidora “Cobra” que nos mostrasse previamente outra obra anterior devida ao mesmo duo, e a impressão foi igualmente empolgante. É esta aqui, que já fora lançada no Rio quase um ano antes e passara por lá totalmente despercebida (embora aprovando bem nas bilheterias). Como a anterior (isto é, a seguinte), de novo um caso de retrospecção ao passado para a investigação de um crime, mas isto no primeiro episódio – “Diana”. Já no segundo, “Eva”, um filme que nos remete ao mesmo clima onírico, de premonição, de alternância e combinação entre o sonho e diversas realidades que, aqui no Brasil, em 1947, fez com que a nossa crítica e cineclubistas ficassem ufanos e deslumbrados com o “Na Solidão da Noite”, o filme inglês em que Cavalcanti dirigia um ou dois dos episódios. Para “Retrato Falado...” poderíamos falar no processo narrativo de flash-backs de “Cidadão Kane” (mas não da mesma forma como um filme argentino de Libertad Lamarque em 42 o imitava), podemos encontrar pontos de ligação com “Laura”, o clássico thriller com Gene Tierney em 44, coisas que são capitais, mas não bastam para dar idéia da expressão e valores peculiares e próprios desse novo filme brasileiro. Para este “Duas Estranhas Mulheres”, apesar do título que poderia insinuar incursões na área do lesbianismo e em verdade gira sobre dois homens, um impacto quase mágico, direto, e que ligado a “O Olho Mágico” e a “Retrato...”, faz com que automaticamente o cinema paulista, tão desacreditado nos últimos anos pelos imediatismos comerciais da “Boca”, passe a existir, passe a fazer o cinema brasileiro existir de uma maneira realmente criativa, independente, sem pedantismos e essencialmente cinemática, daqui para diante. Uma surpresa tratando-se de produção de Cassiano Esteves, uma oportunidade de outro nível (a única que teve até hoje) para o temperamento e a personalidade forte de Patrícia Scalvi, um filme em que, para falar dele, teremos de nos reportar ao injustiçado clássico da Vera Cruz em 52 (“Veneno”), ao referido “Na Solidão da Noite” e até a “Stroszek”, de Herzog (o mesmo clima da subida à montanha, no final, para o “Paraíso ou para o Inferno”), um filme nosso, por todos os títulos, excepcional e absolutamente obrigatório. Nota máxima.

*Publicado originalmente no O Estado de S. Paulo de 23/05/82.



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